Em seus 300 anos, Cuiabá tem um baú de histórias com muitos personagens

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A literatura cuiabana é uma das maneiras de “imortalizar” importantes personagens que fizeram parte da cultura de Cuiabá durante os 300 anos de sua existência, segundo avaliação do escritor e jornalista José Augusto Tenuta, de 66 anos.

Nascido e “criado” nas ruelas do Centro Histórico de Cuiabá, Zeca, como é conhecido, morou boa parte de sua vida na Rua Engenheiro Ricardo Franco, conhecida pelos cuiabanos mais antigos como “Rua do Meio” – uma das primeiras da Capital.

“Nasci na região do Coxipó, em Cuiabá, me criei na ‘Rua do Meio’ e cresci na ‘Rua do Mundeo’, atualmente chamada de Avenida General Melo. Minha família, por parte de mãe, é muito tradicional. Vivenciei muita coisa morando no Centro Histórico”, contou.

De acordo com o escritor, “grandes ícones” do folclore cuiabano costumavam perambular pelo Centro Histórico da Capital.

“Eles [os escritores] sempre ficavam centrados nos mais conhecidos Zé Bolo Flô e Maria Taquara. Outros que também fizeram parte desse cenário ficam esquecidos. A partir do momento que aqueles que viveram a história, como eu, morrerem, esses personagens também desaparecerão”, avaliou.

Motivado pela falta de registro histórico sobre os cuiabanos de antigamente, Zeca se dedicou às pesquisas, que renderam um livro.

“Cuiabá da tchapa e da cruz: pó dexá, é só uma michidinha no baú da nossa história. All right?”, foi lançado em 2015.

Na publicação, Zeca resgatou a história de personagens importantes durante sua infância na Capital, como “Michidinha”, um morador da Rua Joaquim Murtinho e torcedor fanático do Dom Bosco.

“Michidinha” tinha “trejeitos afemininados”, conforme descrição e lembrança de Tenuta.

Zeca contou que ele era filho de uma cozinheira, que trabalhava na casa da família Praeiro, e costumava ficar em frente aos comércios de disco, “vestindo uma calça de cós altíssimo e com um leque nas mãos”.

“Na época, eu tinha cerca de dez anos, o via andando com passos curtos, segurando um leque. Os proprietários das casas de disco colocavam música para tocar e ele dançava sozinho. A gurizada dizia: ‘Michidinha’. E ele dava uma reboladinha. Era fantástico”, lembrou.

“Parceiro do capeta”

Durante o resgate do folclore cuiabano, Tenuta também resgatou a história de um matador de aluguel, conhecido como “Mané Boiadeiro”.

De acordo com ele, apesar de existirem várias versões da mesma história, o homem existiu e costumava fazer “serviços” para políticos.

Os cuiabanos mais antigos costumam dizer que “Mané Boiadeiro” era “parceiro do capeta”, já que, como nunca foi preso pelos delegados de polícia da época, se tornou uma lenda, com direito a histórias fantasmagóricas.

“O lado místico fica por conta dos boatos espalhados por muita gente que afirmava, peremptoriamente, que ‘Mané Boiadeiro’, quando perseguido pela polícia, tinha o poder de se transformar, por onde passava, em qualquer coisa, como toco de árvore, cupinzeiro, mourão de cerca e outros elementos da paisagem natural”, diz um trecho do livro de Tenuta.

O “primeiro galã” cuiabano também teve sua história imortalizada pelo escritor. “Alberto Barbeiro” era filho do braço direito de Cândido Mariano da Silva Rondon, patrono das telecomunicações do Exército Brasileiro por conta da ligação de isoladas áreas através do telégrafo, o que o levou a desbravar mais de 50 mil quilômetros sertão afora.

Alair Ribeiro/MidiaNews

Família do escritor em uma das fotos que ilustram livro escrito por ele

“Ele [‘Alberto Barbeiro’] se vestia todo de branco, inclusive com sapatos brancos, passava brilhantina nos cabelos e andava pela cidade com sua ‘super moto’. Deve ter visto algo parecido nos filmes de cinema e se inspirou”, contou.

Durante o processo de produção do livro, Tenuta acabou descobrindo que o filho de “Alberto Barbeiro” se chama Amauri e herdou a paixão pela profissão do pai, chegando a atender os clientes remanescentes do icônico personagem cuiabano.

Quando criança, Zeca também se lembra de ter visto “Maria Taquara”, transgressora da moral e dos bons costumes da época por ser a primeira mulher a usar calças em Cuiabá.

“Era muito pequeno, mas via ela passar, minha mãe dizia: ‘aquela é a Maria Taquara’, mas não cheguei de conversar com ela. O contexto da época não aceitava o comportamento dela. Era muito alta e magra, andava sempre com uma trouxa de roupa na cabeça. Lavava roupas em um chafariz na Avenida Prainha”, disse.

“Rua das Negras”

Para o escritor, a literatura cuiabana também ajuda a registrar acontecimentos da época, como a mudança dos nomes das principais ruas de Cuiabá. As ruelas costumavam ser conhecidas por apelidos característicos pelos moradores tradicionais.

Em dado momento da história, a Rua Engenheiro Ricardo Franco, por exemplo, chegou a ser chamada de “Rua das Negras”. Como os fundos dos casarões davam acesso à rua, era frequente o grande número de escravos que passavam por ali para buscar água, por exemplo.

“A Rua Engenheiro Ricardo Franco, conhecida como ‘rua do meio’ não existia. Tinha apenas a ‘rua de cima’ e a ‘rua de baixo’, hoje chamadas de Pedro Celestino e Galdino Pimentel. Então, os fundos dos casarões se encontram na rua do meio. Os escravos saiam por ali para atender às ordens dos patrões”, explicou.

O escritor ainda apontou que, sem a liteturatura como ferramenta para imortalizar uma cultura, nomes e personagens se perdem ou podem ter sua história modificada. Como o caso de Ana Maria do Couto May, que tem seu nome pronunciado de forma incorreta por algumas pessoas.

Segundo ele, o correto é falar “Maí”.

“A história e a cultura são feitas de detalhes. Conhecia a Ana Maria do Couto, hoje em dia vejo pessoas pronunciando o nome dela de uma forma que não é correta. Porque em algum momento a história se perdeu”, avaliou.

Futuro da literatura cuiabana 

De acordo com Tenuta, produzir um livro é um processo árduo. O primeiro foi impresso através do Conselho Estadual de Cultura, mas, devido à burocracia, o escritor quase deixou de lançar o livro. Inicialmente, a publicação sobre o folclore cuiabano havia sido negada pelo conselho.

Para ele, é necessário mais incentivo à cultura cuiabana. Apesar dos percalços, o escritor deve lançar uma trilogia sobre a chegada do futebol à Mato Grosso.

Nos novos livros, Tenuta também pretende provar que Cuiabá nunca foi “um fim de mundo”, chegando a ser passagem de jornalistas que estavam em expedição aos Estados Unidos.

Reprodução

TENUTA

 Alberto Barbeiro foi considerado o “primeiro galã de Cuiabá”, diz Tenuta

“Como é fim de mundo se pessoas importantes passaram por aqui? Em 1928 e 1929, Mato Grosso disputou o Campeonato Brasileito em São Paulo, além disso, os jogadores do Santos vieram ao Cine Tropical, um dos mais espetaculares do Brasil”, apontou.

O escritor ainda afirmou que os cuiabanos precisam ser “mais orgulhosos” de suas raízes, para que elas não se percam em meio as mudanças e transformações da cidade.

“O que mais me marcou durante todo esse tempo de vida foi o processo de transformação da cidade. O cuiabano precisa ser mais orgulhoso de sua história. Algumas pessoas falam sobre comer cabeça de pacú com nojo, porém é um costume que faz parte da tradição cultural de um povo”, avaliou.

Tenuta avaliou que ainda há muita história para ser resgatada, porém, também fez um chamado a novos escritores, já que, sozinho não possui recursos para conseguir registrar tudo que já aconteceu em solo cuiabano.

Fonte: Midianews