Uma terra indígena com data marcada para acabar, um estudo público que aponta a região onde ela está como promessa para a mineração do país e uma cooperativa de garimpo novata que chegou na frente de todas as grandes empresas e loteou para si a área. Essa é a combinação de fatores que pode levar, em breve, à extinção dos Piripkura, no norte de Mato Grosso.
Depois de sobreviverem a ataques que quase dizimaram seu povo nos anos 70, os últimos Piripkura vivem isolados em uma terra indígena (TI) cuja portaria de restrição de uso vence em 18 de setembro.
Se não for renovada, acaba a proteção legal ao território de Pakyî e Tamandua —como se chamam os dois únicos habitantes conhecidos da área.
“Tudo indica que a Funai não vai prorrogar”, alerta Ricardo Pael Ardenghi, procurador da República em Mato Grosso. Ele ingressou com uma ação na Justiça para obrigar a manutenção da reserva, mas, a quatro dias do fim do prazo (que se encerra no sábado, 18), ainda não houve decisão.
Além de não dar sinais de que vai manter a proteção aos Piripkura, nove meses antes do vencimento da portaria, em dezembro de 2020, o governo federal escolheu justamente a região que abrange o território tradicional para lançar o primeiro de uma série de “mapas do ouro”.
As Cartas de Anomalia, elaboradas pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM), apontam os locais onde há mais chances de encontrar metais preciosos em todo o norte de Mato Grosso —incluindo a área dos Piripkura.
Depois disso, a Cooperativa dos Mineradores do Vale do Guaporé, criada em 2020, solicitou à Agência Nacional de Mineração (ANM) uma área duas vezes maior que a própria terra indígena para explorar ouro, diamante, manganês e estanho.
São 575 mil hectares requeridos em 65 pedidos de mineração — 63 deles iniciados depois que o estudo da CPRM se tornou público.
“A nossa expectativa é ser a cooperativa de maior produção de minério do Brasil, em um curto prazo”, projeta Ezequiel Alves, um dos sócios do empreendimento.
Dois únicos homens conhecidos do grupo que vivem na terra indígena, em foto tirada pela Funai em 2010
Se autorizadas, segundo Alves, as primeiras extrações devem acontecer dentro de quatro ou cinco meses.
Além da Vale do Guaporé, outras sete cooperativas, empresas e pessoas físicas pediram autorização para explorar o subsolo do entorno da TI depois da divulgação das Cartas de Anomalias.
De 1994 a 2020, a região registrou 119 requerimentos. Após as cartas do Serviço Geológico Nacional serem publicadas, foram 202, um aumento de 70% em apenas oito meses.
Para acompanhar os pedidos de exploração do subsolo, o InfoAmazonia consultou as bases do Sistema de Informações Geográficas da Mineração (Sigmine), da ANM, com dados referentes até 26 de agosto de 2021.
O diretor de Geologia e Recursos Naturais do CPRM, Marcio Remédio, porém, rejeita a ideia de que os documentos da estatal estejam estimulando a cobiça pela área.
“Os dados indicam áreas potenciais para ocorrências de recursos minerais, mas também áreas de recarga de aquíferos e outras informações fundamentais para o conhecimento do meio físico. A visão de que dados geocientíficos são apenas para descoberta de recursos minerais é ultrapassada e equivocada”, defende.
Há também 55 pedidos de exploração minerária sobrepostos ao território tradicional, que constam como inativos no banco de dados da ANM. A mineração dentro de terras indígenas não é permitida no Brasil.
“Não tenho a menor dúvida de que [a portaria] é o que segura os mineradores do lado de fora. Hoje há um certo respeito. Não adianta fazer o requerimento dentro da terra porque o processo não vai avançar”, acredita o indigenista Fabrício Amorim, integrante do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI).
“Certamente a grande esperança dos mineradores é que a portaria não seja renovada”, concorda Ricardo da Costa Carvalho, pesquisador da Opan (Operação Amazônia Nativa), entidade que lançou um relatório sobre as ameaças aos indígenas isolados em Mato Grosso.
O cerco minerário se soma às ameaças antigas de madeireiros, grileiros e fazendeiros que invadiram o território mesmo depois que a TI ganhou proteção temporária.
“Os poucos remanescentes dos Piripkura já estão em risco de vida. A hora em que a portaria deixar de valer os invasores vão para dentro e vão matar os indígenas. E aí não tem como voltar atrás”, prevê Ardenghi.
O temor é o mesmo de Rita Piripkura, a terceira indígena conhecida da etnia, que vive fora da TI.
“Tem muita gente andando lá. Vão matar eles dois. Se matar, aí não tem mais”, afirma Rita em um vídeo lançado pela ONG Survival International para pressionar pela renovação da portaria.
A decisão que restringe o ingresso, a locomoção e a permanência de pessoas dentro dos 240 mil hectares da TI, com exceção dos quadros da Fundação Nacional do Índio (Funai), vem sendo continuamente renovada desde 2008, com duração de três anos. A última vez foi em 2018, no governo Michel Temer (MDB).
É um paliativo diante da demora para a conclusão da demarcação, que se arrasta desde que os indígenas foram contatados, nos anos 1980.
Elias dos Santos Bigio, pesquisador da Opan e ex-coordenador-geral de Índios Isolados e Recém Contatados da Funai, conta que já ouviu de Pakyî, Tamandua e Rita Piripkura que existem outros parentes vivendo na área.
São os sobreviventes de um processo de extermínio que começou na década de 1970, quando latifundiários se instalaram na região, com o apoio do governo de Mato Grosso, e desmataram áreas gigantescas.
Na década seguinte, —época dos primeiros contatos da Funai com os Piripkura —ainda havia entre 15 e 20 indígenas vivendo em isolamento voluntário na região.
“É um mistério: onde estão os restantes dos Piripkura que existiam na década de 1980? Morreram? É difícil saber, eles não falam muito sobre isso”, pondera Amorim, da OPI.
“Na nossa opinião, enquanto houver dúvida sobre a existência [de outros remanescentes], é preciso manter a terra indígena do tamanho que ela está”, avalia.
Até 2007, quando uma expedição da Funai localizou Pakyî e Tamandua, eles haviam permanecido dez anos sem nenhum tipo de contato.
Mesmo depois disso, foram vistos raras vezes, como no dia em que a dupla foi até a base da Funai pedir fogo para reacender sua tocha, momento que entrou para a história no documentário “Piripkura” (2017).
Embora os remanescentes mantenham a cultura e a língua tradicionais, restam dúvidas sobre até quando vão resistir às pressões.
“Tudo indica que eles abandonaram as roças e as aldeias para adotar um modo de vida um pouco nômade. Tornam-se coletores, pescadores e caçadores, porque o inimigo está vindo atrás deles, ocupando seu território e usurpando os recursos naturais”, conta Ariovaldo José dos Santos, servidor aposentado da Funai que participou das primeiras expedições de localização dos Piripkura.
Além dos Piripkura, a campanha do OPI, ISA, Coiab e Survival International alerta para a necessidade de renovação das portarias de outras três TIs de povos isolados: os territórios dos Pirititi, em Roraima, e dos Jacareúba/Katawixi, no Amazonas, ambos com proteção legal até dezembro de 2021, e Ituna/Itatá, no Pará, que vence em janeiro de 2022.
Procurada, a Funai não afirmou se a portaria será renovada, mas declarou que “adotará providências administrativas e técnicas” sobre estudos que estão sendo elaborados para “subsidiar a tomada de decisão”.
Acrescentou ainda que tem um grupo técnico capacitado trabalhando nas questões relacionadas à TI Piripkura e ressaltou que “as ações de proteção territorial são o principal mecanismo para a proteção de indígenas isolados e de recente contato”.
*A reportagem foi produzida pelo InfoAmazonia com apoio da Opan (Operação Amazônia Nativa).
Fonte: Diário de Cuiabá