A vida do técnico de som e iluminação Leandro Leite Silva, de 35 anos, mudou completamente na tarde de 26 de outubro do ano passado. Ele estava em casa, no Bairro Três Barras, em Cuiabá, com a mulher e o filho de três anos, quando policiais bateram à sua porta dizendo que iriam prendê-lo.
Sem passagem pela Polícia, Leandro foi informado que havia sido condenado a 14 anos de cadeia em regime fechado por tráfico de drogas.
A partir de então começava o inferno kafkaniano na vida da família. Levado pelos policiais, Leandro passou 88 dias preso – destes, 74 em companhia dos presos mais perigosos de Mato Grosso na Penitenciária Central do Estado.
Mas havia um erro grotesco no processo. Quem deveria ter sido preso, na verdade, era o traficante Renan dos Anjos, que usou os documentos pessoais de Leandro durante todo a ação judicial.
Leandro conseguiu deixar o presídio no dia 22 de janeiro, após a Defensoria Pública provar que a Justiça havia condenado o homem errado.
Ao MidiaNews, ele contou que um policial à paisana o chamou na porta da residência e disse que estava ali para entregar uma encomenda. Quando ele abriu o portão, o policial tirou a arma e deu-lhe voz de prisão.
“Quando perguntei o motivo, mandou calar a boca e disse que eu estava preso. Disse a ele que nunca tinha mexido com droga, mas minha palavra naquela hora não valeu nada”.
Durante os dias em que esteve no cárcere, Leandro sequer conseguiu dormir em uma cama. Logo após a prisão foi levado para a Cadeia Pública do Capão Grande, em Várzea Grande.
Em questão de horas se viu em uma cela com 17 detentos no Capão Grande, onde ficou durante 14 dias até ser transferido para a Penitenciária Central do Estado, presídio de segurança máxima, local em que ficou até o último dia 22.
Leandro contou que precisou de dez dias para entender que realmente ficaria preso. Depois de tentar por muitas vezes explicar que tinham prendido a pessoa errada e ter sido desacreditado, aceitou que seria mesmo levado do Capão Grande para a PCE.
“Lembro que no Capão Grande me deram um papel, era o mandato de prisão e vi que a condenação era de 14 anos em regime fechado. Fiquei sem saber o motivo. Comecei a ler o papel da prisão, expliquei para a moça que me entregou. Mas não adiantou”.
Comparsas
Renan e um primo de Leandro eram comparsas no mundo do crime. O verdadeiro criminoso namorou uma prima do técnico de som e frequentava a casa da mãe dele, onde ele acredita que teve acesso ao seu RG.
Renan dos Anjos era o verdadeiro condenado e morreu em 2014, durante confronto com a Polícia Militar
Os dados foram usados pelo criminoso quando ele foi preso em Rondonópolis (a 214 km de Cuiabá). E quando Leandro foi levado da casa onde mora pelos policiais, Renan já estava morto havia dois anos.
Ele contou que chegou a implorar para que alguém comparasse as informações dele, como foto e digitais, com a de Renan. Mas, mais uma vez, não foi ouvido e acabou ficando na cadeia.
“Em nenhum momento eles chegaram as informações. Eu pedi muito para que fizessem isso. Basicamente era só terem feito, porque ele [o verdadeiro criminoso] já havia sido preso em Rondonópolis. Quando chegou o 14º dia, já estava ciente que seria transferido”.
Transferência para a PCE
Na PCE, Leandro passou pela triagem e tentou, mais uma vez, explicar que ele não devia estar ali. Tentou falar com a assistente social da unidade. Não adiantou. Foi levado para uma cela pequena com 24 presos. Disseram para ele que os detentos que estavam ali cumpriam um tipo de castigo.
“Eu estava ruim, não estava comendo, não conseguia dormir, estava nervososo e ansioso. Nunca passei por isso, nunca colocaram uma algema no meu braço e, de repente, me levam para um presídio de segurança máxima”.
Durante os primeiros momentos em que esteve na PCE, Leandro e a esposa acreditavam que o processo estava sendo acompanhado por um advogado. Mas descobriram tarde demais que o profissional não havia dado andamento ao caso.
“Ele [o advogado] não fez nada, porque ficou esperando dinheiro. Não o culpo porque quem trabalha quer receber mesmo, mas ele não avisou, não falou nada. Falou que o sistema não estava funcionando, que estava recolhendo provas. Foi enrolando e eu ficando lá”.
Assim que chegou à PCE, ele foi levado para o Raio 1, onde ficou no cubículo 2. No mesmo local estavam 36 presos dividindo o mesmo espaço que é destinado a ala evangélica da unidade penal.
Leandro contou que foi bem recebido e conversou com os detentos, mas também sofreu muitos episódios de humilhação.
“São oito camas para 36 presos, só o pastor dorme sozinho. Quando cheguei no cubículo 2 dormi seis dias dentro do banheiro, porque os novos presos que chegam vão para o final da ‘fila’, que é no banheiro. Conforme vai saindo pessoas, você vai indo para frente. O ‘barro’ é o corredor onde ficam as camas, embaixo da cama é a ‘toca’, três pessoas dormiam lá. Mais seis no corredor. Em nenhum momento dormi em uma cama”.
Quando saiu da PCE, Leandro já estava no cubículo 6, que é chamado de “louvor”. No espaço, além dele, dormiam outros 40 detentos, cinco no banheiro.
Em tempos de pandemia causada pelo novo coronavírus, o técnico de som e iluminação foi exposto a celas superlotadas.
“A única prevenção que tinha era na quadra ou quando ia ter que fazer alguma coisa. Mas no raio mesmo não havia. Eu tentava pensar na minha família para ver se relaxava a cabeça. Ficava pensando até dormir”.
Por conta da Covid-19, Leandro também não pôde receber visitas. O único direito a que tinha era uma ligação de cinco minutos a cada 15 dias.
Saudade da família
Ele lamentou que o dia mais difícil na PCE foi 6 de janeiro, quando o filho caçula completaria mais um ano de vida. Leandro passou o dia chorando pensando na criança.
“A barra toda de passar Natal e Ano Novo longe da família não foi pior que passar o aniversário do meu filho dentro da cadeia. É o meu caçulinha, sou muito apegado a ele e ele comigo, porque dormimos e acordamos juntos. Nesse dia chorei, não fiz nada, fiquei pensando em muitas coisas, só querendo ir embora dali”.
Quando perceberam que o advogado não estava dando andamento no processo de Leandro, a mulher dele procurou a Defensoria Pública. A situação acabou sendo resolvida em cerca de sete dias.
Por conta do trauma, Leandro pretende entrar com uma ação contra o Governo do Estado. A maior preocupação é com o “nome” e se orgulha em dizer que nunca esteve envolvido em esquemas criminosos.
Desempregado, ele explicou que a maior meta agora é arrumar um trabalho. Mas ainda sente dificuldade em lidar com as memórias de ter sido condenado e preso sem culpa alguma.
O defensor público do Núcleo de Execução Penal de Cuiabá, José Carlos Evangelista Santos, foi quem ouviu a história de Leandro e, com auxílio de estagiários e servidores, foi atrás do processo, que correu na 5ª Vara Criminal de Rondonópolis.
Para ele, entre as principais falhas do sistema de segurança e Justiça que possibilitam ilegalidades com a ocorrida com o técnico de som está a inexistência de um sistema que cheque, de forma eficaz, se o preso é, de fato, quem ele declara ser na hora da prisão.
Fonte: Midianews