Pesquisador da Fiocruz diz que situação em MT pode se tornar igual do Amazonas

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Apesar de a pandemia do coronavírus ter se mostrado menos intensa nos primeiros meses em Mato Grosso, o Estado se depara agora com um cenário totalmente adverso: o colapso na rede pública hospitalar. Para o epidemiologista Diego Xavier, pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde da Fiocruz (Fundação Osvaldo Cruz), isso ocorre porque não houve preparação para a doença.

Para reverter a situação, segundo o pesquisador, os governantes têm investido tempo e dinheiro em kits de medicamentos, como Cloroquina e Ivermectina, sem eficácia comprovada.

Xavier afirma ainda que, se Mato Grosso continuar nesse ritmo, a situação pode se tornar parecida com a do Amazonas, o Estado mais afetado pela pandemia.

Em conversa com o MidiaNews nesta semana, o pesquisador ainda comentou sobre as medidas já adotadas em Cuiabá e citou preocupação com cidades do interior, onde a doença vem avançando de forma acelerada.

Confira os principais trechos da entrevista:

MidiaNews – Recentemente o senhor falou que Mato Grosso poderia se transformar em um novo Amazonas. Nesta semana, a Justiça determinou que se faça quarentena obrigatória em Cuiabá e Várzea Grande. Acha que essa medida poderá evitar que sua previsão se concretize?

Diego Xavier – É difícil ter certeza disso. Não estava sendo tomada nenhuma medida. Acho que a maior medida que estava sendo tomada até o momento foi a distribuição de kit de Cloroquina, Ivermectina, Dipirona. Além de Cuiabá, poucas cidades fizeram algum tipo de isolamento. Mas não adianta fazer isolamento em Cuiabá e não fazer em Várzea Grande. Essas cidades são, do ponto de vista epidemiológico, uma coisa só. Dessas medidas de isolamento a gente só vai ter resultado, do ponto de vista prático, daqui duas semanas. A gente precisa esperar para ver o que vai acontecer.

No Amazonas, lamentavelmente, foi uma combinação de fatores. Eles têm UTIs bastante concentradas só em Manaus, não têm uma infraestrutura adequada para deslocamento. As pessoas têm que se deslocar por rios, isso também faz com que ela chegue à unidade de atendimento com a saúde mais comprometida. Esses aspectos Mato Grosso não tem. Por outro lado, o Amazonas é que mobilizou, houve uma preparação e mobilização, o que não aconteceu em Mato Grosso.

No Diário Oficial da União do dia 17 deste mês, por exemplo, foram desabilitados vários leitos de UTI em municípios simplesmente porque as autoridades locais acreditaram que não iam precisar. Quando você começa a combinar esses fatores, a negligência por parte de alguns gestores locais, o negacionismo por acreditar que a doença apresentava algum comportamento somente relacionado ao clima e não ia chegar na população, outro com discurso descoordenado e isolacionista de cada município e também do Governo do Estado… Várzea Grande é o típico exemplo de quem não entende o sistema de saúde. O sistema de saúde funciona em rede, não funciona isolado, e isso é para outras coisas também. As pessoas moram em Várzea Grande e trabalham em Cuiabá, vão para Várzea Grande pegar um avião para irem para outro lugar. Foi um pouco de falta de conhecimento da rede de saúde por parte de quem toma decisão, faltou ouvir técnicos e ficou ouvindo mais questões, na minha opinião, que não têm fundamentação nenhuma na ciência.

Isso se reflete agora na questão de municípios estarem distribuindo kits de Ivermectina e Cloroquina no momento em que a gente não tem nenhum estudo científico que comprove a eficácia dessas drogas. Nesse sentido, acredito que se não fossem tomadas essas medidas pelo Ministério Público, lamentavelmente a gente teria uma situação parecida com do Amazonas ou de outros estados que tiveram um volume de mortalidade muito alto por negligência.

MidiaNews – Pelo que o senhor tem acompanhado, é necessário tomar medidas mais drásticas em outras cidades do Estado, já que há um certo consenso de que a doença está se interiorizando?

Diego Xavier – A doença praticamente já chegou em todas as cidades de Mato Grosso. Depois que ela chega, é esperado um aumento no volume de casos e óbitos. Esse processo de interiorização chega. O grande problema é que a maior parte desses municípios são pequenos e não têm uma estrutura de saúde para atender, não é todo município no Mato Grosso que tem UTI e sempre foi assim. Isso racionaliza o recurso, por isso a saúde funciona em rede.

Uma pessoa que fica doente em Diamantino, por exemplo, tem que se deslocar para um município maior para procurar atendimento. A doença vai chegar no interior e essa população precisa se deslocar para um município maior em busca de atendimento. Precisa olhar para a rede de saúde. Por exemplo, se Cuiabá atende Poxoréu, então Cuiabá tem que ter leitos para Poxoréu. Não é colocar leitos em Poxoréu. Rondonópolis atende Primavera, Jaciara. Tem que abrir mão desse discurso político e pensar nas pessoas e no dinheiro público. Não dá para abrir leito em cada cidade pequena de Mato Grosso, isso é inviável.

Por isso os leitos, antes, estavam concentrados nos polos de atendimento, então tem que reforçar esses polos para receber a população e dar condições para essa população chegar. E não tomar medidas isoladas. E cada município faz o seu. Do ponto de vista da saúde, isso está errado. Não se prepararam, tiveram muito tempo para se preparar, emplacaram um discurso negacionista de que a doença não ia chegar e agora ficam tentando soluções mágicas com essas pílulas que não funcionam para nada. O máximo que a Ivermectina vai fazer é matar o verme; e a Cloroquina vai tratar quem está com malária ou vai provocar um problema de arritmia cardíaca. Porque já está provado que o remédio é ineficiente contra o coronavírus. Se continuar, infelizmente, muita gente vai morrer.

MidiaNews – Em entrevista à Folha de S.Paulo no dia 18 de junho, o senhor afirmou que cidades como Cáceres, Sinop, Sorriso e Confresa estavam à beira do colapso. E tudo piorou de lá para cá. Estas cidades ainda são as mais preocupantes?

Diego Xavier – Não tenho informações atualizadas sobre a condição de leitos desses municípios. Cáceres, por exemplo, atende uma rede que vai além do Brasil. Muita gente da Bolívia vai se tratar lá. No início o discurso era único, de união, de tentar resolver o problema juntos, mas depois com a troca de ministros, com discursos divergentes e o negacionismo em relação à doença, a gente acabou provocando o que está acontecendo em Mato Grosso hoje. E o que podem fazer agora, porque não se prepararam, é tentar criar uma solução mágica de distribuir Cloroquina e Ivermectina para as pessoas se protegerem. Isso é perigoso porque a pessoa pode tomar o medicamento e ir para a rua achando que está imune porque o presidente falou, porque o prefeito falou… Isso pode provocar um problema muito pior. Você toma a Cloroquina, acha que não vai transmitir, não vai pegar a doença, não usa máscara, vai para a rua e pronto!

MidiaNews – Na comparação com outros estados, Mato Grosso ainda não está entre os locais mais afetados pela doença. A falta de leitos é nosso grande gargalo?

Diego Xavier – Sim. Mato Grosso pode não estar a nível de números absolutos tão ruim quanto outros estados, mas está em uma curva ascendente. Se a gente compara hoje Mato Grosso com São Paulo, não faz sentido porque a doença só ganhou força recentemente em Mato Grosso. São Paulo está em um processo de estabilização da epidemia com tendência de queda em algumas regiões. Mato Grosso está em ascendência. Quando esse problema todo passar, vamos ter condições de comparar.

A oferta de leitos para casos graves é um gargalo enorme porque você não tem como atender as pessoas que chegarem com Covid. Inevitavelmente você vai ter ocupação desse leito por outros problemas de saúde que continuam acontecendo, como infarto, derrame… Quando a gente faz o isolamento, principalmente o lockdown, você evita que outras causas aumentem, por exemplo, acidentes de trânsito. O lockdown é para a gente ter um respiro do sistema de saúde para conseguir absorver as pessoas que estão chegando com Covid ou outras causas e conseguir atender. Vamos chegar em uma situação em que Mato Grosso vai ter que mandar [pacientes] para outros estados.

MidiaNews – O prefeito de Cuiabá Emanuel Pinheiro fechou o comércio e tomou medidas restritivas no dia 20 de março, quando a cidade tinha um caso apenas. Acha que foi precipitado?

Diego Xavier – Não, acho que foi precaução. Em saúde a gente prova pela precaução ao invés do risco. O problema é que no caso de Cuiabá, não adianta Cuiabá fechar e Várzea Grande continuar como se nada estivesse acontecendo. As pessoas que ficam doentes em Cuiabá e Várzea Grande vão se tratar no mesmo lugar. A cidade não é uma ilha, existe uma rede de conexão entre as cidades. O vírus não respeita o limite político administrativo, ele não vai chegar na ponte e não vai atravessar para Cuiabá. Se todos os municípios tivessem acompanhado, essa ascendência não ia ser tão grande. Mas isso não foi feito, a doença foi ignorada em Mato Grosso.

MidiaNews – Depois disso, o prefeito sofreu muita pressão do empresariado para reabrir e acabou relaxando em algumas medidas. Como o gestor deve agir num momento como este: ouvir a ciência ou olhar também a parte social?

Diego Xavier – Não existe essa dicotomia. Uma população doente não produz economicamente, uma população em luto também não produz. Não tem como separar essas coisas. Quando você deixa a responsabilidade a cargo de um prefeito só, o setor comercial local vai fazer uma pressão imensa. Se a gente tivesse trabalhando em rede de saúde, a região de saúde de Cuiabá, que são os municípios que utilizam a rede de atenção de saúde da Capital, se reunissem e tomassem essa decisão juntos, não teria um prefeito que sofreria essa pressão, seria o conjunto e você distribuiria a pressão. “A fome que virá depois da pandemia vai matar muito mais”, dizem. Eles estão falando de uma coisa que nem sabem, estão projetando um futuro dos que vão morrer depois do coronavírus, mas ele não têm nem ideia de quantas pessoas vão morrer por coronavírus. Como o setor comercial pode falar isso? O discurso está errado porque começou errado do Governo Federal. Ele criou essa dicotomia entre economia e saúde e não se pensou em estratégias.

MidiaNews –  A Fiocruz acompanha a taxa de transmissão em Mato Grosso, a chamada taxa R?

Diego Xavier – A gente tem um sistema chamado Monitora Covid-19, que tem vários indicadores, de isolamento social, de casos diários, óbitos. Tem muito mais informação do que só a taxa de transmissão. Essa taxa de transmissão tem um problema muito grave que é a questão da subnotificação. Você a calcula com base no número de casos que está ocorrendo. Se você tem muita subnotificação, essa taxa acaba enviesando. É melhor para a população acompanhar o número de casos e óbitos diários que está aumentando, que é um indicador mais simples de compreensão. A gente está falando de pessoas que estão se infectando. A gente optou por não utilizar essa taxa de transmissão.

MidiaNews – A Fiocruz tem uma ideia de quando Mato Grosso vai atingir o pico da Covid-19?

Diego Xavier – É difícil precisar porque não é só uma pandemia que está acontecendo, são várias. Cada município está em um estágio epidêmico diferente, depende de quando a doença chegou e quando começou a crescer. Fora isso, depende muito do comportamento da população. Vamos supor que não tenha lockdown e as pessoas vão para a rua e ignorem completamente a doença, esse pico chega mais cedo. Se as pessoas mantiverem a quarentena, a gente não vai ter um pico, mas vai ter um período estendido em que esses casos estarão ocorrendo. A ideia, quando a gente fala em achatar a curva, é justamente esticar o período epidêmico. Se concentrar tudo em um período só, você tem esse grande pico, não tem como atender a população e o volume de óbitos aumenta muito mais.

  MidiaNews – E tem ideia de quanto tempo vai durar o platô, até que os casos comecem a cair?

Diego Xavier – Difícil precisar, mas se olharmos para outros lugares, a Itália já está por volta do dia 150 da epidemia e agora estão tomando medidas de relaxamento. Mato Grosso está no período em que a doença está começando a crescer. Também tem a diferença de população e a taxa de contágio pode ser mais acelerada ou menos acelerada. O que dá para imaginar é que, fazendo o lockdown agora, daqui duas semanas a gente vai conseguir ver algum resultado desse medida e vamos conseguir avaliar melhor.

MidiaNews – A grande esperança da humanidade no momento é o surgimento de uma vacina. Qual a expectativa do senhor em relação a prazo?

Diego Xavier – Estão já fazendo testes aqui no Brasil. O Brasil é o país escolhido para fazer testes porque tem uma alta taxa de contágio. Estão começando esses testes principalmente em equipes de saúde. Existe uma expectativa de que para o ano que vem a gente tenha essa vacina. Em um cenário muito otimista, talvez até o fim do ano a gente tenha uma vacina produzida, mas não quer dizer que a gente já vai ter essa vacina. Depois que ela for produzida, testada e a gente chegar em uma vacina que é viável, tem todo um processo de produção e depois de distribuição. A Fiocruz está tendo contato com a Faculdade de Oxford, que está desenvolvendo a vacina, e a gente vai ter capacidade de produzir essa vacina. Mas até o fim do ano não temos previsão de tê-la distribuída para a população.

MidiaNews – Um estudo da Prefeitura de São Paulo apontou que o número de casos lá passava de 1,2 milhão quando os dados oficiais mostravam que havia 120 mil. Ou seja: para cada caso oficial, há dez não contabilizados. Acredita que esta proporção se repita em outros Estados?

Diego Xavier – É difícil assegurar isso. O que São Paulo está fazendo, que é uma pesquisa da Universidade de Pelotas, é o inquérito sorológico. Eles vão procurar anticorpos no sangue da pessoa e vão identificar se a pessoa já teve ou não a doença. A questão é que precisa testar mais, independente do lugar. Mato Grosso precisa aumentar muito o número de testes. A gente precisa saber o tamanho do problema que estamos enfrentando. A gente está testando casos graves. O Ministério da Saúde distribuiu testes e se eles forem aplicados daria uma taxa de 18 mil testes por milhão de habitantes. No Reino Unido, estão fazendo mais de 100 mil testes por milhão de habitantes. Quanto mais a gente testar, mais a gente identifica os casos, isola esses casos e rastreia.

MidiaNews – Aqui em Mato Grosso, passou um pouco a obsessão pela Cloroquina, mas a procura pela Ivermectina tem aumentado muito, com uma verdadeira corrida às farmácias. Qual real o efeito deste medicamento? E o uso profilático resulta em maior proteção?

Diego Xavier – As pessoas estão tratando verme, é só isso. Ivermectina serve para isso. Não existe nenhuma pesquisa indicando que a Ivermectina pode ser usada de forma profilática para não pegar Covid. Isso é falácia. Felizmente não é um remédio tão danoso quanto a Cloroquina. Se a pessoa respeitar a dosagem, porque qualquer remédio que tomar demais é um veneno, ela vai ficar muito bem para combater vermes, mas não vai resolver nada para Covid. Isso que está acontecendo em Mato Grosso é um absurdo.

Fonte: Midianews