A Santa Casa de Misericórdia tem mais de dois séculos de história acumulada na capital mato-grossense. Enfrentando hoje uma crise financeira devido a uma dívida de R$ 80 milhões que resultou no fechamento de suas portas em março, o hospital foi construído por conta de recursos oriundos de uma herança e foi um dos pilares fundamentais para que Cuiabá se tornasse oficialmente capital de Mato Grosso.
Aníbal Alencastro conta ao Olhar Direto que a casa de saúde surgiu em um momento curioso – as capitanias estavam se tornando provincias. A “capital” de Mato-Grosso era Vila Bela da Santíssima Trindade, quando a região era uma das capitanias-gerais do Brasil. No total, 9 capitães-generais de Portugal vieram para o estado, porém um deles, João Augusto D‘Oyennhausene Gravenburg, não tomou posse por receio quanto a uma epidemia em Vila Bela e foi para Cuiabá.
A Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá foi aguardada pela população desde 1740, quando houve um pedido formal dos moradores para a criação de um hospital. Porém o pedido foi negado pelo Conselho Ultramarino, visto que a região era de ocupação recente, com constantes ataques indígenas e instabilidade de atividade mineradora, de acordo com Marcia Adriana dos Santos em sua tese de mestrado “A Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá (1817-1930)”.
Em 1755, o português Manuel Fernandes Guimarães, ao morrer, deixou escrito em seu testamento que metade de sua herança deveria ser utilizada para a construção de uma Misericórdia em Cuiabá para acolher leprosos por conta do receio de contágio. A quantia deixada era de doze contos de réis.
Inicialmente, o Capitão-General Caetano Pinto de Montenegro estabeleceu que a construção da Misericórdia acontece em Vila Bela em 1803, justamente por ser a sede oficial do governo português e também pelas epidemias que se alastravam na região. Porém, o Capitão foi transferido para Pernambuco, assumindo em seu lugar João Augusto D‘Oyennhausene Gravenburg, que decidiu honrar o legado de Manuel Fernandes Guimarães.
O dinheiro doado foi por fim utilizado para a construção da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá em 1814, antes mesmo da aprovação de Dom João VI por conta do alto número de pessoas com lepra na região. A unidade foi inaugurada em 8 de dezembro de 1817 com o nome de Nossa Senhora da Conceição da Misericórdia, com uma construção ao estilo neo-gótico. A inauguração acontece cinco anos antes da independência do Brasil e 274 anos depois da Santa Casa de São Paulo.
Por conta da inauguração, Vila Bela começou a ficar abandonada. Alencastro explica que há indícios de que houve uma tentativa de assegurar a capital em Vila Bela, porém sem sucesso. “Isso também forçou a fixação de capital aqui em Cuiabá. A cidade não era capital, mas com essa construção, esse empenho todo de se fazer esse sistema de saúde fez com que a capital fosse fixada aqui”, explica. A oficialização de Cuiabá como capital, entretanto, veio somente 18 anos.
Marcia Adriana dos Santos aponta que os problemas admnistrativos começaram poucos anos depois. Já em 1835 não haviam médicos suficiente para a população e as pessoas preferiam, inicialmente, a ajuda de curandeiros que já eram familiarizados com suas doenças. As doações feitas eram insuficientes, fazendo com que o número de atendimentos fossem reduzidos, somado ao fato de que muitos preferiram se cuidar em casa por conta de um alto índice de mortalidade na unidade hospitalar.
Tudo poderia ser doado para ajudar na manutenção do hospital – como jóias e escravos, mas nada parecia ser o suficiente para que a Misericórdia não passasse por problemas financeiros. Ainda na metade do século XIX, os problemas estruturais eram recorrentes, com obras sendo paradas a qualquer momento. Por conta da estrutura, inclusive, muitos pacientes tiveram que ser tratados em casa, segundo a tese.
Portanto, os problemas admnistrativos e financeiros enfrentados em 2019 pela Santa Casa de Misericórdia não são totalmente inéditos, sendo originados pouco tempo depois de sua inauguração.
A unidade hospitalar não realiza atendimentos públicos desde 11 de março de 2019 por conta da dívida de R$ 80 milhões com funcionários e fornecedores. Em razão disso, os pacientes oncológicos e nefrológicos foram transferidos para o Hospital de Câncer e Hospital Geral da União (HGU). Entretanto, não foi liberado prontuário para que eles fossem regulados para outros hospitais, e os pacientes continuam sendo tratados na unidade.
Fonte: Olhar Conceito