‘Vai existir outra pandemia; só não sabemos quando e a proporção’, diz infectologista

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O mundo ainda luta para deixar para trás a pandemia da Covid-19, que matou 4,14 milhões de pessoas, mas já deve acelerar o passo com investimento na ciência se quiser se prevenir contra outras epidemias globais que virão.

Segundo a infectologista Márcia Hueb, que atua no Hospital Universitário Julio Müller, em Cuiabá, a existência de novos surtos no futuro é uma possibilidade real, só não se sabe quando isso ocorrerá e a proporção que terá.

Em entrevista ao MidiaNews, a médica explica que a preocupação é garantir que os países não sejam pegos tão desprevenidos como ocorreu em 2020, com a pandemia do novo coronavírus.

“No campo da ciência, a gente diz que vai existir outra pandemia. A gente não sabe qual a proporção ou quando, mas a gente sabe que outras pandemias virão”, disse.

Hueb ainda falou sobre a importância da vacinação, da necessidade de se manter as medidas de biossegurança ativas mesmo diante da queda lenta, mas gradual, no número de internações em UTIs e mortes pela Covid-19. Ela falou sobre o atraso na vacinação de Cuiabá e defendeu o retorno às aulas, desde que as escolas promovam um ambiente seguro.

Confira os principais trechos da entrevista:

MidiaNews – A redução nas internações em UTIs é resultado exclusivamente da vacina ou há outras explicações?

Márcia Hueb – A vacina pode ser considerada a grande responsável, mesmo que a gente tenha um percentual ainda baixo de imunização da população – no caso com as duas doses ou com a dose única quando é a Janssen –, em torno de 15%.

Isso não seria o suficiente para conter a disseminação da doença, mas prioritariamente os que foram vacinados em duas doses até o momento são os mais velhos ou aqueles que têm condições de risco. E essas pessoas eram mais sujeitas à doença grave e consequentemente à hospitalização. Então, o que contribui para termos um menor número de internações é termos a parcela de maior risco da população já protegida. Então temos menos chances de termos os hospitais lotados.

Em compensação, temos ainda uma transmissão elevada do vírus e riscos, sim, de ter casos graves nesse grupo de pessoas, mesmo quando você não tem um grande número que tem a forma grave que evolua para óbito.

MidiaNews – A senhora diz, então, que as pessoas não podem ver a queda no número de internações em UTIs como um motivo pra relaxar nas medidas de biossegurança?

Márcia Hueb – Exatamente. Não há motivo para relaxar. Essas notícias de países que liberam do uso de máscara e permitem encontros são de locais que chegaram muitas vezes a 70% da população imunizada. É muito diferente do que nós temos. Estamos muito longe disso.

Cada pessoa vacinada é uma vitória, mas nós estamos longe daquela proteção onde há um bloqueio da transmissão, quando já tem tanta gente imunizada que o vírus não consegue encontrar as pessoas que estão ainda suscetíveis, que podem ficar doentes. Estamos muito longe disso.

Então, mesmo quando vacinados, temos que manter exatamente os mesmos cuidados que tínhamos antes de ser vacinado. Acho que a gente deve se lembrar que o alerta se mantém, que não estamos com a situação controlada. Estamos em uma situação melhor em relação ao que estivemos recentemente, que era uma situação dramática. Não quer dizer que estamos bem. Apenas estamos melhores em relação ao que era apresentado até pouco tempo. Tem variantes chegando, estamos poucos vacinados e devemos manter todos os cuidados.

MidiaNews – Um dos problemas que tem se verificado em Cuiabá é um alto índice de ausência das pessoas aptas a receber vacina. Ao que atribui isso?

Márcia Hueb – Há muitas fake news, transmissão de notícias de formas erradas, principalmente nas redes sociais e no WhatsApp. Se aparece alguém com uma complicação de uma vacina, isso já cria um alarde desnecessário, exagerado sobre a situação.

Temos que situar que para milhões de vacinados, você pode ter um ou outro com o desenvolvimento de alguma complicação grave, mas isso sempre existiu, para qualquer vacina ou medicamento que a gente use. Só que não existia essa atenção voltada para todo mundo que tá sendo vacinado. Então parece que isso é uma novidade, mas não é.

Complicações, reações, podem existir, mas o risco de ter doença é maior do que ter a complicação por uma vacina. Então, justifica. A gente só recomenda a vacina porque na balança que pesa o risco e o benefício, o benefício é infinitamente maior. Protege para que eu não tenha uma doença mais grave e protege outras pessoas. Cada um que vacina protege a si mesmo e a muitas outras pessoas.

Existe uma associação, às vezes, de posições políticas, de aprovação política com aquilo que é um assunto de saúde, de saúde pública. Uma coisa não tem a ver com a outra. Alguns acham que não se vacinar é demonstrar o apoio a um determinado político, como o próprio presidente [Jair Bolsonaro], que declara não ter se vacinado. Primeiro, que a gente não sabe se isso é verdade. Não sei se ele não se vacinou, porque ele tem equipes médicas e uma série de condições que o protegem de tudo e a gente não sabe o que acontece na vida privada dele.

“Há muitas fake news, transmissão de notícias de formas erradas, principalmente nas redes sociais e no WhatsApp”

As pessoas confundem isso. Elas podem dar aprovação ao político que quiser, mas deveria pensar na saúde dela, deve cuidar e seguir as orientações dos especialistas sobre se vacinar, sobre qual medicamento deve usar.

Há casos, ainda, de pessoas que têm algum grau de dificuldade de acesso a um posto de vacinação, que dependem de outro para levá-la.

MidiaNews – E qual seria a solução? Ampliar os postos de vacinação, fazer uma propaganda mais positiva da vacina?

Márcia Hueb – Isso. Não tivemos [essa propaganda] em nenhum momento desde o início da pandemia, muito menos quando passamos a ter vacina. Em 2021, qual foi a campanha tivemos para uma vacinação em massa? Qual foi a promoção em saúde que tivemos para dizer às pessoas que deveriam se vacinar? E isso sempre é feito pelos órgãos públicos, pelas autoridades públicas, que muitas vezes trazem aquelas pessoas que desfrutam de muita credibilidade frente à população para uma campanha.

O que a gente viu foi o contrário, uma propaganda contrária ao uso de vacinas, infelizmente. Acho que nos órgãos públicos, nas grandes instituições de saúde pública que temos no país, cada gestor deveria fazer campanhas para vacinação em massa, mostrar que a vacina permitirá a proteção da saúde de todos, a condução de volta à normalidade, e com isso a proteção também da economia.

E também promover situações para que as pessoas possam ir se vacinar. Como por exemplo, usar as unidades de atenção básica em saúde, para que ali seja um local de vacinação ou pelo menos que seja de busca, de resgate das pessoas para vacinação.

MidiaNews – Qual é o risco da chegada da variante delta no Brasil?

Márcia Hueb – Hoje, temos notícia de pouco mais de 200 pessoas infectadas pela variante Delta. A maioria ainda está no Estado do Rio de Janeiro. Mas para que a gente saiba qual é o vírus que está na pessoa, precisamos de um sequenciamento genômico. No Brasil, isso é feito em uma parcela muito pequena dos indivíduos que são testados. Então, a gente faz isso num percentual muito mais baixo. Quer dizer que não sabemos, de fato, quais as variantes que circulam em um dado momento.

MidiaNews – Hoje, então, não há como fixar quantas variantes estão em circulação?

Márcia Hueb – Não. Mas existe um monitoramento, que é feito com alguns poucos que vão para laboratórios de referência. Com esses poucos,  a gente sabe que a variante Delta, por exemplo, está presente em alguns Estados. Em Mato Grosso, não foi detectada. Isso não quer dizer que não exista aqui, porque não temos barreiras, não há impedimento de circulação entre Estados e nem de entradas de outros países para cá.

Nós sabemos hoje que o Rio de Janeiro concentra o maior número, mas que em São Paulo já detectaram a presença dessa variante. Eu acho que ela vai circular muito, assim como quando chegou a variante P1.

Mas vale lembrar que a variante é sempre uma consequência de uma circulação do vírus, ela não é a causa da circulação do vírus. Ela existe porque ele circula muito e dá oportunidade para ter as variantes. Essa [Delta] especialmente parece ser mais transmissível, mas a gente tem que ter muito cuidado com isso, porque muitas vezes se diz que tem muitos casos dessa variante, mas ela apenas coincide com uma situação de não controle da disseminação da circulação dos vírus.

MidiaNews – O fato de ser mais transmissível significa que ela é mais forte ou não?

Márcia Hueb – Não, até o momento não existe nenhuma evidência que essa variante resulte em casos mais graves da Covid. Não existe essa evidência. Pelo contrário, aparentemente você vai manter um certo percentual muito semelhante às outras. Aparentemente, a principal característica dela é ser mais transmissível do que as demais que estavam circulando.

MidiaNews – O que se sabe sobre a eficácia das vacinas que temos na prevenção da variante delta?

Márcia Hueb – De forma geral, a gente sabe que todas as vezes que as nossas vacinas foram testadas para variantes, continuaram sendo protetoras, mas com alguma queda na taxa de proteção. E isso fazia com que a segunda dose fosse mais importante ainda.

A Coronavac, assim como outras vacinas que são de vírus inativos, mas inteiros, tendem a ter uma taxa de eficácia geral um pouco menor, mas por ser de vírus inteiro, elas têm todas as proteínas do vírus e tendem a proteger mesmo contra as variantes. Porque as variantes mudam algo, mas continuam sendo um coronavírus.

Nós temos outras vacinas que tem um nível de proteção final muito alto, como por exemplo as vacinas de RNA. Essas vacinas, como usam uma única proteína do vírus, a taxa de proteção para as variantes pode cair um pouquinho.

Mas temos sempre que pensar o seguinte: não importa se é contra uma variante ou não. Sempre é muito melhor estar vacinado do que não estar, mesmo que haja alguma queda de proteção.

E todas as vacinas, de alguma forma, estão sendo trabalhadas também para em um futuro relativamente breve terem uma proteção aumentada, já colocando no seu conteúdo algo relacionado a essas variantes. Então está sendo trabalhado, mas por enquanto, o que temos de evidência, é que elas continuam protegendo.

MidiaNews – São Paulo anunciou que irá começar uma nova rodada de vacinação em 2022, a partir de janeiro, mesmo ainda não havendo comprovação cientifica da necessidade disso. Além disso, há estudos para a terceira dose de algumas vacinas. Como analisa esses casos?

Mária Hueb – Acho que não se deve falar em terceira dose antes de ter todo mundo vacinado com as duas doses. Temos que estar preocupados em conseguir concretizar a imunização da população brasileira. Temos que estar com 70%, 80% das pessoas vacinadas. É isso que interessa hoje.

Agora, existem estudos iniciados que vão pegar essa resposta, se precisa de mais uma vacina após 12 meses. Aí, já não chamaríamos de uma terceira dose, mas de um reforço. Mas não podemos confundir estudo com uma ação de saúde pública.

O que o Governo de São Paulo fala é em fazer um reforço, visto que a pandemia não estará erradicada, mas no máximo controlada. Se pensar por esse lado, se justifica, porque realmente não vamos nos livrar da pandemia ainda esse ano só porque todo mundo foi vacinado. Mas, ao mesmo tempo, não existe evidência. Então, essa medida só vai ser válida se mostrar que conseguiu vacinar toda essa população até final de dezembro.

MidiaNews

Dra. Marcia Hueb

“Em Cuiabá, aquela centralização no início parece ter contribuído para esse cenário [de baixa imunização]”

Não há ainda como saber se a vacinação será anual. A vacina contra a gripe é anual não por reforço, mas porque o vírus da Influenza muda a cada ano. Nós no momento não sabemos se a gente vai ficar convivendo com diferentes coronavírus, com o que hoje chamamos de variantes. E mais: não sabemos se a gente perde a proteção da vacina.

Porque quando a gente mede esses anticorpos pelo exame da sorologia, quando ele não aparece quer dizer que você perdeu sua proteção? Ninguém sabe. Porque nós temos algo chamado resposta imune celular [que reside nas células do sistema imunológico], e ela não é medida. Ela está muito mais relacionada à memória de proteção para ativar quando necessária  do que propriamente a esses anticorpos que circulam.

Quem vai poder fornecer esses dados? Os próprios estudos de vacina.

MidiaNews – Acha que há que o risco de surgir uma variante resistente a todas essas vacinas?

Márcia Hueb – O risco sempre existe, mas normalmente não é do dia para noite. Porque vai variando tanto que vai vindo um alerta. No painel de controle de monitoramento do vírus vai se vendo que ele está cada vez se afastando mais daquele original. Enquanto estamos nos falando, aqueles que trabalham com a construção da vacina já estão trabalhando com possibilidade de acrescentar formas de proteção para variantes que já estão se distanciando. Então, não acredito que do dia para a noite vamos perder toda a proteção.

MidiaNews – Cuiabá tem 11% da população completamente vacinada. A que atribui essa baixa porcentagem?

Márcia Hueb – É muito mais ritmo de vacinação, mesmo. A quantidade de vacina que chega também. No começo, a logística também não estava boa. Ficamos muito tempo com um único posto de vacinação. Tivemos várias condições que nos levaram a uma cobertura baixa. Se você observa aquele mapa de vacinação no Brasil, Mato Grosso sempre esteve trás, como os que menos vacinam.

Em Cuiabá, aquela centralização no início parece ter contribuído para esse cenário, inclusive o local era de acesso difícil para quem usa transporte coletivo. Tudo isso dificulta muito. Então acho que foram alguns erros, alguns equívocos, além de um baixo abastecimento por parte do Governo Federal. Tivemos uma compra muito atrasada, em número pequeno, com distribuição equivocada.

Isso reflete em números muito precisos. Hoje, a gente lidera em número de óbitos proporcionais ao número de habitantes, por exemplo.

MidiaNews – Quando fala do ritmo de vacinação é como um reflexo da quantidade de vacinas que recebemos ou de uma lentidão na aplicação?

Márcia Hueb – As duas coisas podem acontecer. Você tem já um quantitativo baixo e aquele quantitativo ainda demora a chegar no braço das pessoas. Por que demora? No interior, pode ser falha na logística, dificuldade na distribuição. Se é na Capital, é uma logística que dificulta o acesso à vacinação, concentrando em poucos postos e aí você precisa fazer um agendamento tímido em razão do tamanho do lugar.

Então, vão somando situações que vão dificultando. Hoje se tenta correr atrás.

MidiaNews – Acredita que é preciso tomar medidas mais radicais para acelerar a vacinação?

Márcia Hueb – O problema é que essas ações mais radicais dependem de ter vacinas e não temos a quantidade necessária. Então, não adianta. Só depende do Governo Federal. O que a gente precisa é ter muita vacina.

MidiaNews – Nesse ritmo, quando a gente deve ter a chamada imunidade de rebanho?

Márcia Hueb – Sempre devemos pensar nisso pela vacina, jamais pela doença. Se tivermos em torno de 70% da população  vacinada, seria um índice satisfatório. Os gestores dizem que até o final de 2021,  a gente vai estar com a população toda vacinada.

MidiaNews – Acredita que isso é possível?

Márcia Hueb – Possível é, mas tem que lembrar que não pode parar em feriado, sábado, domingo. Tem que tentar ter um ritmo, traçar metas e ter um programa de vacinação, que hoje a gente não vê no Brasil. A gente vê que esses programas foram particularizados por municípios, o que jamais aconteceu antes.

Nós tínhamos o melhor Programa Nacional de Imunização do mundo e sempre as campanhas foram organizadas em nível central pelo Governo Federal. Mas não é o que acontece agora. Hoje, não temos uma orientação única, que venha do Governo Central. Não temos uma organização central, ficou por conta dos estados e municípios.

MidiaNews – As aulas da rede pública estadual devem retornar pelo sistema híbrido em agosto. Acha essa decisão acertada?

Márcia Hueb – Eu acho que o acertado sempre é que a escola privada e a escola pública devem receber a mesma atenção. Não pode ter privada em condição de retorno e a escola pública sem condição. Isso vai ampliar a diferença que existe nas condições ofertadas para as nossas crianças e jovens.

É possível retornar, se você respeita todas as medidas de biossegurança e a escola tem condições higiênicas para alimentação, para alternância de turno, condições sanitárias em geral, com banheiros que podem ser frequentados e limpos com todo o controle. Acho que pode ter o retorno no sistema híbrido, sim.

Então, tendo responsabilidade e as condições sanitárias, é possível. Porque eles realmente são menos sujeitos ao Covid e às manifestações graves. Isso é uma realidade.

MidiaNews – Podemos ter outras pandemias no futuro?

Márcia Hueb – Sim, é possível. Hoje, há uma grande preocupação na saúde global, inclusive procura-se discutir a saúde global como saúde única e essa abordagem deve ser para a saúde humana, animal e ambiental, de forma que a gente tenha um controle melhor das situações.

E há também uma preocupação que a gente não esteja tão despreparado para enfrentar. Esse conceito de saúde pública, saúde inclusiva, que as pessoas possam dispor de cuidados independente da sua condição é uma discussão cada vez maior, para que não aconteça o que a gente viu nessa pandemia. Porque é um enfrentamento difícil para todos, mas especialmente para aqueles menos assistidos, que são os que morrem mais.

Na verdade, no campo da ciência, a gente diz que vai existir outra pandemia. A gente não sabe qual a proporção ou quando, mas a gente sabe que outras pandemias virão.

MidiaNews – De que forma os governos devem se preparar para ter uma resposta rápida e adequada?

Márcia Hueb – Por conta dos estudos iniciados lá atrás é que quando aconteceu a pandemia agora, foi possível, em um período tão rápido, a gente chegar a vacinas novas. Tem gente que questiona: por que antes a gente demorava 15 anos e essa saiu tão rápido? E é por isso. Se você incentiva que a ciência sempre seja ativa mesmo que naquele momento não tenha uma aplicabilidade. Nem tudo tem uma aplicação imediata. Mas você deve prosseguir com o fomento às pesquisas para que, no momento que seja necessário atuar. É como se os botões só precisassem ser ligados, mas as condições estão ali.

Não só isso, como dar importância ao que é importante, como por exemplo a situação do meio ambiente, para que a gente saiba viver de uma forma mais harmônica e não tenha outras pandemias. Porque essas doenças dependem de ciclos e esses ciclos têm relação com a própria natureza.

E também pensar em redes de colaborações em que os países que sejam mais ricos tenham condições de terem continuamente redes que possam tanto influenciar a ciência quanto dar oportunidade de assistência quando necessário, para que o mundo não seja pego de forma tão desprevenida.

Fonte: Midianews